Shikunshi do Cerrado
Pretende-se a releitura com a flora local da pintura sumi-e, uma pintura com tinta preta (sumi) praticada no Japão por monges e samurais, mediante a representação de temas da paisagem natural brasileira. O esforço consiste nas semelhanças morfológicas entre plantas do Cerrado brasileiro e os shinkushi tradicionalmente retratados na arte japonesa. Essa técnica de pintura monocromática pode ser atualizada com o olhar brasileiro na arte e na cultura japonesa, mediante a representação de novos temas, a fim de promovê-la e divulgá-la para as novas gerações. O resultado obtido com as pinturas demonstra que é possível a renovação temática da arte sumi-e e manter seus fundamentos tradicionais. Nessa substituição dos shikunshi do extremo oriente pelos Shikunshi do Cerrado brasileiro seguiu-se uma desconstrução da lógica de uma única realidade e apresentou-se uma outra para o seu modo de existir.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O sumi-e é uma pintura com tinta preta (sumi) praticada no Japão desde o séc. X. Tradicionalmente, os temas mais retratados são os elementos da natureza. Dentre esses, destacam-se os shikunshi: ran, take, kiku, ume. Na literatura sobre a arte sumi-e, esses shikunshi são citados como os "Quatro Senhores" que representam as quatro estações do ano e os quatro caráteres nobres associados às virtudes humanas. Desde a antiguidade, as representações dessas plantas, com técnicas variadas, ressaltam a velocidade, o movimento e o sentido do crescimento, a luz, a sombra, as sobreposições, o tempo, o espaço e, principalmente, as formas que acompanham seus ciclos vitais.
Essas plantas são elementos comuns da paisagem natural japonesa. Desse modo, os pintores, incluídos monges e samurais, escolhiam temas do seu cotidiano, temas familiares da sua terra, com os quais se identificavam e com os quais reverenciavam a natureza. Além disso, alguns temas eram mais utilizados por servirem como base para o aprendizado das técnicas fundamentais de pintura. Esse é o caso dos shinkushi tradicionais. Além do simbolismo associado, a pintura dessas plantas permite o treino e aprendizado dos traços básicos da arte sumi-e.
Surge a seguinte questão: é possível atualizar o sumi-e sem se afastar de seus fundamentos tradicionais? Nesse caso, em relação ao tema shinkushi, quais seriam as plantas brasileiras, em especial as do cerrado que pudessem representá-los neste lado do mundo? A resposta veio a partir da observação da flora do Cerrado: algumas plantas, pela forma e beleza, muito se assemelham aos “quatro senhores” tradicionais.
Assim, seguindo-se o conselho do poeta, monge e andarilho Bashô – “não siga as pegadas do mestre. Procure o que ele procurava” –, buscou-se uma versão brasileira, uma nova perspectiva de observação de nossa realidade a partir das tradicionais artes japonesas. Desse modo, criar algo novo, adotar um outro modo de existência para a arte sumi-e, sem se afastar de seus fundamentos originais que forçam o indivíduo para o autoconhecimento e autodesenvolvimento em harmonia com a natureza.
2 FUNDAMENTOS DA ARTE SUMI-E
O sumi-e (墨絵) é uma pintura japonesa com tinta preta (sumi) sobre papel de fibras naturais utilizando pinceladas rápidas e precisas. Essa arte envolve também uma determinada atitude presente no Zen, como a prática de integrar o ser e o fazer, e essa atitude precede o ato de pintar. No sumi-e a mente precede o pincel. Por isso, a adequada postura corporal, a respiração consciente e, a concentração e o foco naquilo que se está fazendo são condições fundamentais para que o resultado da pintura expresse esse nível de integração.
O sumi-e clássico é essencialmente monocromático. No entanto não se trata de rejeição às cores, mas de uma simplificação somente possível a partir do refinamento da sensibilidade cromática. Esse refinamento permite compreender que a tinta preta não é simplesmente preta; a partir dela, podem ser obtidos diferentes tons e matizes (OKAMOTO, 1951, p. 8; HAMAYA, 2016, p. 40). A diluição da tinta gera tonalidades, desde o preto aos tons mais claros. Desses tons e da simplicidade das formas é que surgem a beleza e a expressividade do sumi-e. (Massao Okinaka Korasi 2009, p.75).
Shikunshi
Conhecidos no extremo oriente como os "Quatro Senhores", os shikunshi (Fig. 1) são o conjunto de quatro temas tradicionais da pintura japonesa, que retratam a um só tempo a natureza, o feminino e o masculino, por meio da associação das características de quatro plantas com as estações do ano e com o caráter humano devido às semelhanças quanto à aparência e ao crescimento. Os Shikunshi são representados por meio de quatro símbolos que evidenciam a profunda ligação dessa arte com a natureza. A ran (orquídea selvagem), o take (bambu), o kiku (crisântemo) e o ume (ameixeira) simbolizam, respectivamente, a primavera, o verão, o outono e o inverno.
O significado interior desses “Quatro Senhores” – take 竹, ran 蘭, kiku 菊 e ume 梅 –, seu simbolismo associado às vivências humanas, torna-se perceptível somente quando a pintura é realizada com a mente tranquila e o coração sereno. Nesse sentido, UCHIYAMA, Ukai (1990, p. 20) menciona que devido à grande variação de técnicas utilizadas nas pinturas dos shikunshi, quem as domina torna-se de fato um artista.
Esses e outros elementos da natureza são temas recorrentes nas criações artísticas do Japão. Além do simbolismo associado às vivências humanas, os shikunshi conduzem o aprendizado dos fundamentos do sumi-e. Por meio deles, desenvolve-se o aprendizado dos traços básicos e treina-se o controle do uso do pincel, da tinta e da água. Quanto ao aspecto humano, simbolizam as qualidades mais refinadas do caráter humano: a simplicidade, a retidão, os relacionamentos e a união do novo com o antigo. Esses shikunshi são referências na música, poesia, dança e, em especial, na execução dos traços em sumi-e.
3.1.1 Ran
O primeiro dos shikunshi, a ran 蘭 (Fig. 2), orquídea selvagem, representa a primavera (haru 春, em japonês), simboliza as virtudes femininas, a beleza, a pureza e a aparente fragilidade. É pequena e cresce nas montanhas entre rochas onde encontra água.
3.1.2 Take
O Take 竹 (Fig. 3), bambu, simboliza a resiliência, o equilíbrio, a humildade e a simplicidade, além de representar o verão (natsu 夏) no arquipélago japonês. O crescimento do tronco do bambu corresponde à retidão, ao caráter íntegro e inabalável, apesar de flexível é estável, pois mesmo numa tempestade ele se curva, mas não quebra. Seu interior é oco, simbolizando o vazio interior no qual o espírito alcança a humildade. Ele é considerado o “cavalheiro perfeito”.
3.1.3 Kiku
O Kiku 菊 (Fig. 4), crisântemo, simboliza o outono (aki 秋) no Japão, quando florescem em cores e formas espetaculares. Durante essa estação, são realizados diversos festivais que celebram essa flor, considerada a "Flor Nacional do Japão". O crisântemo de 16 pétalas estampa o selo imperial e a moeda de 50 ienes. Além de simbolizar a longevidade na cultura japonesa, suas pétalas concêntricas representam os círculos familiares.
3.1.4 Ume
O Ume 梅 (Fig. 5), ameixeira, é símbolo do inverno (fuyu 冬) e floresce em janeiro trazendo a promessa da primavera que se confirma quando os primeiros brotos delicados florescem. Seu tronco antigo é escuro, duro e retorcido, fazendo alusão à velhice, enquanto seus galhos mais jovens, os quais simbolizam a juventude, são retos, flexíveis e cheios de brotos e flores. Suas flores são belas, variando em tons entre o branco ao vermelho, e delicadas, simbolizando a impermanência. Assim, o antigo e o novo coexistem na mesma árvore, uma referência direta ao ciclo da vida e seu processo de decadência e renovação.
Shikunshi do Cerrado
Os Shikunshi tradicionais têm seu tempo e espaço no extremo oriente e os Shikunshi do Cerrado têm seu lugar no tempo presente das autoras, ou seja, em seu país, em sua cidade natal e no cerrado brasileiro.
Essa técnica tradicional japonesa pode ser atualizada com o olhar brasileiro na arte e na cultura japonesa, mediante a representação de novos temas, a fim de promovê-la e divulgá-la para as novas gerações. Além disso, pode-se e deve-se usar a arte para chamar atenção para temas sensíveis, como é o caso da urgente e necessária recuperação dos biomas naturais, tanto no Brasil como no restante do mundo. Por esse motivo, a associação e a representação de elementos da paisagem por meio da arte sumi-e é uma apropriação oportuna e legítima. Assim fazendo, promove-se a divulgação e atualização dessa técnica de pintura. E, em conjunto, veiculam-se temas de interesse para a divulgação e defesa do patrimônio cultural e natural.
Desse modo, com o objetivo de divulgar e propor uma releitura `a técnica de pintura sumi-e, sem se afastar de seus fundamentos tradicionais, e chamar atenção para temas nacionais, resolvemos inovar e trazer para o sumi-e temas da paisagem natural do Brasil. Assim, escolhemos retratar por meio da pintura sumi-e a Colestenia, o Taquari, a Caliandra e a Cagaita, plantas nativas do Cerrado Brasileiro, associando-as a quatro outras plantas tradicionalmente retratadas em pinturas japonesas; o que gerou um resultado extremamente original, desconhecido até então pelo público.
Os Shikunshi do Cerrado, portanto, são a associação de quatro plantas nativas do Cerrado Brasileiro, por suas características morfológicas, aos quatro shikunshi tradicionais, da seguinte forma:
a. A colestenia (Koellensteinia tricolor) (Fig. 6) é associada à ran (orquídea selvagem);
b. O taquari (Actinocladum verticillatum) (Fig. 7) é associado ao take (bambu);
c. A caliandra (Calliandra dysantha Benth) (Fig. 8) é associada ao kiku (crisântemo); e
d. A cagaita (Eugenia dysenterica) (Fig. 9) é associada ao ume (ameixeira).